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Texto de 1984 (link) |
Eram quase onze horas e no Departamento de Registro, onde Winston trabalhava, já arrastavam cadeiras dos cubículos e as arrumavam no centro do salão, diante da grande teletela, preparando-se para os Dois Minutos de ódio.
Winston ia ocupando seu lugar numa das filas do meio quando entraram inesperadamente na sala uma pessoa que conhecia de vista, mas com quem nunca falara. Era uma moça com quem se encontrara muitas vezes nos corredores. Não sabia como se chamava, mas sabia que trabalhava no Departamento de Ficção. Devia ter uns vinte e sete anos, e era de aparência audaciosa, com cabelo castanho e espesso, rosto liso e movimentos rápidos, atléticos. Uma estreita faixa escarlate, emblema da Liga Juvenil Anti-Sexo, dava várias voltas à sua cintura, o suficiente para realçar as curvas das ancas.
Winston antipatizara com ela desde o primeiro momento. E sabia porquê. Eram sempre as mulheres, e principalmente as moças, os militantes mais fervorosos do Partido, os devoradores de palavras de ordem, os espiões amadores e os espículas dos desvios. Esta jovem lhe dava a impressão de ser mais perigosa que a maioria. Uma vez que se haviam cruzado no corredor, ela lhe lançara um rápido olhar de esguelha que parecia tê-lo penetrado até o imo, e o enchera de terror. Até lhe ocorrera a ideia de que talvez fosse da Polícia do Pensamento.
Mais um instante, e um guincho horrendo, áspero, como de uma máquina monstruosa funcionando sem óleo, saiu da grande teletela. Era um barulho de fazer ranger os dentes e arrepiar os cabelos da nuca. O ódio começara.
Como de hábito, a face de Donald Trump, o Inimigo do Povo, surgira na tela. Aqui e ali houve apupos entre o público. A mulherzinha de cabelo cor de areia emitiu um uivo misto de medo e repugnância. O programa dos Dois Minutos de ódio variava de dia a dia, sem que porém Trump deixasse de ser o personagem central cotidiano. Era o traidor original, o primeiro a conspurcar a pureza do Partido. Todos os subsequentes crimes contra o Partido, todas as traições, atos de sabotagem, heresias, desvios, provinham diretamente das suas campanhas.
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Ambos partidos sujos exportam leis violentas |
Winston sentiu contrair-se o diafragma. Nunca podia ver a cara do Trump sem uma dolorosa mistura de emoções. Trump lançava o costumeiro ataque peçonhento às doutrinas do Partido - um ataque tão exagerado e perverso que uma criança poderia refutá-lo, e no entanto suficientemente plausível para encher o cidadão de alarme, de receio que outras pessoas menos equilibradas o pudessem aceitar. Insultava o Big Biden, denunciava a ditadura do Partido, exigia a imediata conclusão da paz com a Eurásia, advogava a liberdade de palavra, a liberdade de imprensa, a liberdade de reunião, o dever de invadir outros países, gritava histericamente que a revolução fora traída - e tudo numa linguagem lenta, monossilábica, que era uma espécie de paródia do estilo habitual dos oradores do Partido.
Antes do ódio se haver desenrolado por trinta segundos, metade dos presentes soltava incontroláveis exclamações de fúria. Era demais, suportar a vista daquela cara adequada e satisfeita mostrada na tela: além disso, ver ou mesmo pensar em Trump produzia automaticamente medo e raiva. O estranho, todavia, é que embora Trump fosse odiado e desprezado por todo mundo, embora todos os dias, e milhares de vezes por dia, nas tribunas, teletelas, jornais, livros, suas teorias fossem refutadas, esmagadas, ridicularizadas, apresentadas aos olhos de todos como lixo atoa... e apesar de tudo isso, sua influência nunca parecia diminuir. Havia sempre novos bocós esperando para ser seduzidos. Não se passava dia sem que confederados e racistas grosseiros, obedientes a ordens dele, não fossem desmascarados pela Polícia do Pensamento. Era comandante de um vasto exército de sombras, uma rede subterrânea de conspiradores dedicados à derrocada do Estado. Supunha-se que se chamava a Supremacia Branca. Murmurava-se também a respeito de um livro terrível, um compêndio de todas as heresias, escrito por Trump, e que circulava clandestinamente aqui e ali. Era um livro sem título.
No segundo minuto o ódio chegou ao frenesi. Os presentes pulavam nas cadeiras, e berravam a plenos pulmões, esforçando-se para abafar a voz alucinante que saía da tela. Num momento de lucidez, Winston percebeu que ele também estava gritando com os outros e batendo os calcanhares violentamente contra a travessa da cadeira. A morena atrás de Winston pusera-se a berrar "Racista! Racista! Racista!" De repente, apanhou um pesado dicionário de Novilíngua e atirou-o à tela. O horrível dos Dois Minutos de ódio era que embora ninguém fosse obrigado a participar, era impossível deixar de se reunir aos outros. Em trinta segundos deixava de ser preciso fingir. Parecia percorrer todo o grupo, como uma corrente elétrica, um horrível êxtase de medo e vindita, um desejo de matar, de torturar, de amassar rostos com um malho, transformando o indivíduo, contra a sua vontade, num lunático a uivar e fazer caretas.
E no entanto, a fúria que se sentia era uma emoção abstrata, não dirigida, que podia passar de um alvo a outro como a chama dum maçarico. Assim, havia momentos em que o ódio de Winston não se dirigia contra Trump mas, ao invés, contra o Big Biden, o Partido e a Polícia do Pensamento; e nesses momentos o seu coração se aproximava do solitário e ridicularizado herege da tela, o único guardião da verdade e da sanidade num mundo de mentiras. No entanto, no instante seguinte se irmanava com os circunstantes, e tudo quanto se dizia de Trump lhe parecia verdadeiro. Nesses momentos, o seu ódio secreto pelo Big Biden se transformava em adoração, e o Big Biden parecia crescer, protetor destemido e invencível, firme como uma rocha contra as pragas da Ásia, e Trump, apesar do seu isolamento, sua fraqueza e da dúvida que cercava a sua própria existência, lhe parecia um hipnotizador sinistro, capaz de destruir a estrutura da civilização pelo simples poder da voz.
O ódio chegou ao clímax. No mesmo momento, porém, arrancando um fundo suspiro de alívio de todos, a figura hostil fundiu-se na fisionomia do Big Biden, de barba feita e cabelos brancos, cheio de força e de misteriosa calma, e tão vasta que tomava quase toda a tela. Ninguém ouviu o que o Big Biden disse. Eram apenas palavras de incitamento, o tipo das palavras que se pronunciam no vivo do combate, palavras que não se distinguem individualmente mas que restauram a confiança pelo fato de serem ditas. Então o rosto do Big Biden sumiu de novo e no seu lugar apareceram as três divisas do Partido, em maiúsculas, em negrito:
SEM JUSTIÇA, SEM PAZ
VERBA ÀS COMUNIDADES COMUNAS
MATEM OS 1%
Ninguém mencionou a jovem e educada candidata do Partido Libertário, Jo Jorgensen. Jorgensen, porém, já era uma IMPESSOA. Ela não existia: ela jamais existira, e o seu partido agora comemora 49 anos da inexistência. A sua fatia do voto atualmente crescia a 80% ao ano. Daqui a pouco até viajar seria liberado, e o alistamento e voto forçado abolidos para sempre.
Para melhorar o seu inglês, nada como a minha polêmica tradução de Monteiro Lobato: America's Black President 2228. Na Amazon (link)
Saiba mais sobre as crises econômicas dos EUA--leia para entender o que causou o Crash de 1929:
Na Amazon: A Lei Seca e o Crash. Todo brasileiro entende rapidinho o mecanismo desta crise financeira de 1929. Com isso dá para entender as de 1893, 1907, 1987, 2008 e os Flash Crashes de 2010 e 2015.
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